A volta do cabo Anselmo como cidadão
Carreira Militar

A volta do cabo Anselmo como cidadão


O marinheiro que desafiou os militares, se tornou um dos mais polêmicos agentes da repressão e vive na clandestinidade há 44 anos ganha ação na Justiça que obriga a União a lhe devolver a identidade e os direitos civis.
Alan Rodrigues
Istoé - Dez/2008

O retrato ao lado tem exatos 44 anos.

Ele mostra a imagem de um dos mais controversos protagonistas dos "anos de chumbo". Trata-se de José Anselmo dos Santos, o marinheiro que foi um dos estopins do golpe militar em 1o de abril de 1964. Conhecido como "Cabo Anselmo", ele desafiou a hierarquia militar com uma ação incendiária entre os marinheiros; virou militante da esquerda armada contra o regime; preso, mudou de lado e transformou-se em carrasco dos antigos companheiros. Até que se abram os arquivos da ditadura, não se saberá quantas pessoas morreram por causa de suas informações. Numa histórica entrevista à ISTOÉ em 1984 - a primeira das duas que ele concedeu em quatro décadas -, Cabo Anselmo estimou entre 100 e 200 o número de presos por conta de suas delações a maioria foi morta. Para a esquerda, Cabo Anselmo foi o mais vil dos traidores; para os militares, o ex-marinheiro foi um eficiente "cachorro" (informante) que ajudou o regime a desvendar a rede de organizações revolucionárias. Desde 1964, Cabo Anselmo vive na clandestinidade. Foi Daniel, Jônatas, Américo Balduíno e Alexandre da Silva Monteiro. Morando um dia aqui, outro acolá, ele ainda submeteu-se a uma cirurgia plástica no rosto para despistar os inimigos. Na segunda-feira 15, Cabo Anselmo ganhou o direito de voltar a ser cidadão. A juíza Sílvia Melo da Matta, da 8ª Vara Cível da Justiça Federal em São Paulo, determinou um prazo de cinco dias, a partir da intimação, para que a União apresente a certidão de nascimento de Cabo Anselmo.
Chamado de "Anjo Exterminador", Cabo Anselmo tenta recuperar sua identidade desde 2004 e, segundo seu advogado, Luciano Blandy, é provável que o Estado seja obrigado a abrir os polêmicos arquivos da ditadura para poder cumprir a decisão judicial. Isso porque certamente entre os papéis tão bem guardados estão cópias dos documentos do marinheiro. Sabe-se que Cabo Anselmo nasceu em 13 de fevereiro de 1942 em Itaporanga D'Ajuda (SE), mas o cartório onde foi registrado seu nascimento pegou fogo e nenhum documento pode ser recuperado. Na igreja em que ele foi batizado também não existe rastro do livro de registros.
O próprio Cabo Anselmo, através de e-mail encaminhado à ISTOÉ, diz por que busca resgatar sua cidadania. "Nasci no Brasil, vivi e lutei por ele. Tenho direito, no mínimo, à minha cidadania. Sou um velho de 66 anos que vive há 44 na condição de clandestino. Para a burocracia do meu país, eu simplesmente não existo. Não tenho RG, CPF, Carteira de Trabalho, Título de Eleitor, nada. Quando tenho algum problema de saúde não posso ir a um hospital público. Se faço um bico para conseguir algum dinheiro, tenho que guardá-lo debaixo do colchão, porque não posso ter conta bancária. Estou velho e não sei até quando vou durar nesse mundo.
A última coisa que eu desejo é ser enterrado em algum cemitério como indigente. Depois de tudo o que passei nessa vida, o mínimo que eu gostaria de ter quando dela me for é uma lápide com o nome de José Anselmo dos Santos. Será que isso é pedir muito?"
Na verdade, o ex-informante dos militares precisa do documento não só para colocar uma pedra sobre o passado. Diante da penúria financeira em que vive, Cabo Anselmo tem-se movimentado para ser indenizado pelo Estado, na Comissão de Anistia, por danos materiais e profissionais. Caso seu pedido seja julgado procedente, a União terá que indenizá-lo em pelo menos R$ 100 mil, valor mínimo pago às vítimas da ditadura. "Ele busca as reparações financeiras pelas oportunidades profissionais e pessoais perdidas por causa do regime", explica o advogado Blandy. Cabo Anselmo é número 42.025 na fila de casos a serem investigados pela comissão, de um total de 62 mil. Destes, mais de 20 mil já foram julgados desde 2002, quando da criação da Comissão de Anistia. O certo é que a entidade nunca foi confrontada com algo tão polêmico como o pedido de indenização de um agente duplo. Oriundo dos quadros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Cabo Anselmo foi um dos primeiros a ser preso pelo governo dos militares, em abril de 1964. Dois anos depois, fugiu da prisão e em 1967 foi para Cuba fazer treinamento de guerrilha. Ao retornar ao País, em 1971, estava na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Preso pelo Dops paulista no mesmo ano, foi aliciado como informante pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, para o qual trabalhou até 1973.
Cabo Anselmo merece ser indenizado? Outra vez, é o próprio Anselmo quem responde: "A lei me dá esse direito. Mesmo se as bobagens e mentiras que falam a meu respeito fossem verdade, ainda assim, de acordo com o que diz a lei, eu teria direito à indenização.
Meu filho, você sabe o que é viver 44 anos na clandestinidade? Você sabe o que é ser preso, ficar pendurado pelado em um pau-de-arara, tomando choque pelo corpo todo? Você sabe o que é defecar de medo e de dor? Passar a vida com medo de ser preso ou de ser morto em uma esquina qualquer? A tal democracia veio para você, seu vizinho, seu chefe, mas não veio para mim. Primeiro porque, se eu não existo para o Estado, eu não posso fazer valer meus direitos, e segundo porque, embora eu me enquadre na lei como beneficiário de indenização, resolve-se colocar uma questão ideológica em cima e me negam esse direito. É como se dissessem em algum artigo lá da tal lei 'essa lei não se aplica a José Anselmo dos Santos'. Só quero aquilo que a lei me confere como direito, nada mais."
"Será o julgamento mais emblemático e interessante de todos, mesmo porque há quem diga que ele foi agente infiltrado desde o começo", entende Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia.

Fonte: Usina das Palavras




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