Ouça quem sabe, presidente
Carreira Militar

Ouça quem sabe, presidente


por Augusto Nunes
"Você sabe falar português?", pergunta o médico João da Silva Couto Lima, numa sala do Hospital de São Gabriel da Cachoeira, à jovem índia que ali chegara na véspera, acompanhando a avó doente. O balanço horizontal do rosto informa que não. O nervoso movimento pendular dos olhos acrescenta que a garota percorre a linha que separa o medo do pânico. "Quantos anos você tem?", Lima quer saber. Um fiapo de voz diz algo parecido com diezisseis.
"Ela tem 16 anos", compreende o major João da Silva Couto Lima. Para dirigir o único hospital da região batizada de Cabeça do Cachorro, nos cumes da Amazônia profunda, Lima trocou a farda pelo jaleco. Todos os médicos e enfermeiros são militares do Exército, engajados na 2ª Brigada de Infantaria de Selva. Todos os pacientes são índios.
Como a menina e sua avó, costumam percorrer centenas de quilômetros em busca da salvação. "Pelo sotaque, elas vivem perto da fronteira com a Colômbia ou com a Venezuela", diz Lima. "Mas não ignoram de que lado estão. Os índios que vêm de lá não sabem onde acaba um país e começa outro".
Mas dominam a arte de encurtar distâncias numa região onde as viagens são medidas em muitas horas, ou alguns dias. Caminhando por trilhas invisíveis a olhares forasteiros, tripulando barcos que avançam em segurança por igarapés, acabam chegando à cidade que ocupa o terceiro lugar no ranking das mais populosas do Amazonas.
Além dos 30 mil habitantes do centro urbano, espalha-se pelo município um número de filhos da selva rigorosamente incalculável. Os recenseadores do IBGE jamais conseguirão radiografar com precisão um universo formado por 22 etnias distribuídas por 610 comunidades. Decerto passam de 20 mil. Gente demais para nenhuma estrada.
"São Gabriel é a cidade mais indígena do Brasil", informa o general Antônio Hamilton Martins Mourão, comandante da Brigada. Gaúcho, 52 anos, Mourão é considerado o melhor soldado de selva do país. É mais que isso, contam os moradores da cidade à beira do Alto Rio Negro, a 850 quilômetros (sete dias de barco) de Manaus.
Se não estivessem por lá os 1.700 homens comandados por Mourão, não existiria, por exemplo, o hospital. Concluído em 1988, começou a funcionar há quatro anos, por teimosia da Brigada. Em tese, a tropa deveria limitar-se a vigiar e proteger 1.500 quilômetros de fronteira. Não é pouca coisa, sobretudo quando o território a defender é freqüentemente invadido por garimpeiros vizinhos e infestado de narcotraficantes associados às Farc colombianas.
Mourão cuida disso tudo - e de muito mais. Entre 2006 e 2007, acabou involuntariamente promovido a governador militar da cidade flagelada pelo sumiço dos braços do Estado. O juiz de direito passou nove meses em Manaus, ajudando a mãe a perder a eleição. A promotora, licenciada por gravidez, protagonizou o mais demorado parto da história. Consumiu quase um ano. O delegado se foi. Ficou quem não faria falta: o prefeito corrupto. O general enfrentou tais problemas enquanto combatia dois exterminadores de tribos: o alcoolismo e a subnutrição.
Nenhum governo resolverá a questão indígena sem ouvir quem sabe. Ouça os soldados da Amazônia, presidente Lula.
Augusto Nunes da Silva é jornalista.
Fonte: recebido por correio eletrônico



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