por Janer Cristaldo
Alguém ainda lembra da guerra do Afeganistão? Não falo da penúltima, aquela travada contra a Rússia, em 1979.
Começou no mesmo ano em que o aiatolá Khomeiny entrava no Irã a ferro e fogo, com seus pasdarans metralhando bares e boates, estes antros ocidentalizados do Grande Satã. Uma conterrânea minha, de Santana do Livramento, estava lá nesse dia, fazendo dança de ventre. Não me perguntem porque uma santanense fazia dança de ventre em Teerã. Santanenses têm desses ímpetos. Bueno, teve de correr para a embaixada brasileira, de chador, fio dental e passaporte na mão.
O conflito ocorreu entre tropas soviéticas, que apoiavam o governo marxista do Afeganistão e os muhajidin afegãos que, armados pelos Estados Unidos, tentavam derrubar o regime comunista no país. Dez anos depois, em 1989, os russos acharam melhor voltar para casa. Há historiadores que consideram terem sido os altos custos econômicos e militares da guerra que contribuíram para o colapso da União Soviética, dois anos depois.
Falo da última guerra no Afeganistão.
Após a saída dos russos, criou-se um vácuo de poder, que foi assumido pelos taliban – talib, no singular – milícia sunita da etnia dos pashtuns, que instauraram uma república teocrática muçulmana, com tudo que isso significa em matéria de opressão para as mulheres. Aconteceu então o 11 de Setembro, cujo mentor, o saudita Bin Laden, teria suas bases de treinamento no Afeganistão. Antes mesmo da explosão das torres gêmeas, os EUA já pediam aos taliban a expatriação de Bin Laden, que, ironicamente era parceiro dos aliados afegãos dos americanos na luta contra os russos.
Com o atentado ao World Trade Center, em outubro do mesmo anos, as tropas americanas invadem o Afeganistão e expulsam os taliban do poder. Apesar de a maioria dos terroristas do 11 de Setembro serem sauditas, liderados por um terrorista saudita, Bush aproveitou a azo e invadiu também o Iraque. É bem possível que este seu gesto tenha eleito Barack Obama. O grande cabo eleitoral de Obama, a meu ver, foi George Bush. McCain poderia ter as simpatias do eleitorado americano, mas não foi possível carregar Bush nas costas.
Mas não era disto que pretendia falar. Queria, antes de entrar no assunto, relembrar alguns fatos que não permanecem muito tempo nesta nossa memória RAM dos dias que correm. Basta desligar a mente, e lá se foi a memória toda pro espaço. Mas o jornalista se previne passando alguns dados para o disco rígido. E o meu tem muito espaço. O que mais me marcou nesta segunda guerra do Afeganistão foi a burka, que muito jornalista até hoje confunde com o chador iraniano ou o hijab árabe. São véus bem distintos.
A burka surgiu nos jornais com a segunda guerra do Afeganistão. É uma espécie de gaiola que cobre todo o rosto, a mulher só conseguindo ver atrás de uma tela quadriculada. O rosto permanece completamente oculto. Chador é outra coisa. Para começar, é iraniano e não árabe. Cobre o corpo e os cabelos da mulher, mas não o rosto. O hijab árabe também não cobre o rosto.
Falava de meu disco rígido. Não sei se comporta dez megabytes de memória. Mas certas imagens dos jornais eu as mantenho nítidas. Numa página, os bravos soldados americanos, verdadeiros arsenais ambulantes. Na outra, mulheres, com dentaduras magníficas, sorrisos encantadores, rostos livres ao vento. A civilização ocidental vencia. As muçulmanas podiam agora exibir toda sua beleza. As reportagens se tornaram lugares-comuns atrozes: soldados cheios de armas, mulheres cheias de dentes.
Leiamos então a
Folha de São Paulo de hoje. Relata Dexter Filkins, do
New York Times:
PARA ESTUDAR, JOVENS AFEGÃS DESAFIAM ATAQUES DE ÁCIDO CANDAHAR, Afeganistão - Numa manhã recente, Shamsia Husseini e sua irmã caminhavam à escola local para meninas quando um homem de motocicleta parou ao lado delas e perguntou: "Vocês estão indo à escola?" Então ele arrancou a burca de Shamsia de sua cabeça e borrifou seu rosto com ácido. Hoje as pálpebras e o lado esquerdo do rosto de Shamsia são recobertos por cicatrizes irregulares e descoloridas. Sua vista freqüentemente se anuvia, causando dificuldade para ler. Tenho muitos outros desses casos em minha memória, particularmente no Egito, na Argélia e na Tunísia. Mas
o crime não era a freqüência à universidade, e sim o fato de andar seu véu. Os bravos machos muçulmanos, não suportando a visão de uma cabeça sem véus, jogavam ácido no rosto das hereges. No Afeganistão, o caso é mais grave.
O crime é querer instruir-se, adquirir uma profissão. Educação é privilégio de quem tem colhões. Quem não os tiver, que permaneça em casa, inútil e analfabeta. Mas, ao que tudo indica, as afegãs não estão pensando render-se aos brutos. Continua Filkins:
Se o ataque com ácido a Shamsia e 14 outras mulheres - alunas e professoras - visava apavorar as meninas e levá-las a permanecer em casa, parece ter fracassado em seus propósitos. Hoje quase todas as meninas feridas estão de volta à escola Mirwais para Meninas, incluindo Shamsia, cujo rosto ficou tão gravemente queimado que ela precisou ser enviada ao exterior para ser tratada. Algo que talvez seja ainda mais espantoso é que quase todas as outras alunas da comunidade, profundamente conservadora, também retornaram às aulas - cerca de 1.300 ao todo. "Meus pais me disseram para continuar vindo à escola, mesmo que me matem", disse Shamsia, 17. Como quase todas as mulheres adultas dessa área, sua mãe é analfabeta. "Quem me fez isto não quer que as mulheres tenham instrução. Quer que sejamos burras."O pior ataque às meninas foi em 12 de novembro passado, quando três duplas de homens em motocicletas começaram a circular em volta da escola. Eles atacaram 11 meninas e quatro professoras; seis foram hospitalizadas. O caso mais grave foi o de Shamsia.Valentes, estes senhores, os taleban. Os muçulmanos, costumo afirmar, padecem de ginecofobia.
São muito machos para se explodirem em lugares públicos e matarem inocentes. Reagem como cachorro covarde, com o rabo entre as pernas, ao ver um rosto feminino nu ou uma mulher tentando educar-se e adquirir uma profissão.Fonte: Janer Cristaldo
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