por Roberto Carvalho de Medeiros
Mianmar, antiga Birmânia, cujo nome oficial é “União de Mianmar”, ficou mais conhecida nos últimos anos não só pela devastação em diversas cidades desse país causada por ciclones sobre o continente asiático, mas, principalmente, pela demora e dificuldade aplicada pelo seu governo em aceitar e autorizar a entrada e presença de ajuda internacional humanitária para enfrentar os desafios decorrentes daquela destruição feita por forças naturais.
Também ficou famosa no campo da política internacional após o Instituto Nobel ter oferecido, em 1991, o seu mais importante reconhecimento, o Prêmio Nobel da Paz, para a líder política da oposição, Aung San Suu Kyi. A Junta Militar que governa aquele país a mantém incomunicável em sua prisão domiciliar desde a fracassada eleição de 1990.
A história da Coreia do Norte formalmente começa com o estabelecimento da República Popular Democrática em 1948. Todavia, é oportuno relembrar que desde a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial, o paralelo 38 foi utilizado pela ONU como linha divisória da Coreia, ficando com a ex-União Soviética de administrar a parte norte da península e os EUA a parcela sul.
A recente política de enfrentamento do governo norte-coreano a fez se projetar ao redor do mundo, tanto em relação ao seu projeto de construção de artefato nuclear, bem como as ameaças frequentes de hostilidades ao seu vizinho do sul.
O que tem a ver esses dois países em comum? A distância geográfica entre os dois é enorme. O primeiro, Mianmar, fica localizada no Oceano Índico, na parte oriental da Baia de Bengala, e o segundo, Coreia do Norte, situa-se na parte norte da península da Coreia, no Extremo Oriente.
Entre eles existe um conjunto de nações, de povos e de culturas bem diferentes entre si.
Em comum existe a presença de um vizinho de grande dimensão geográfica e econômica, a China. Uma verdadeira “parede” pela sua extensa área territorial e crescente capacidade militar que, de formas diferentes, influencia com mais ou menor intensidade os Estados vizinhos, de acordo com os interesses envolvidos, concretos ou velados.
Um recente relatório de ex-funcionário de Inteligência do Ministério da Defesa de Mianmar, publicado em parte pelo jornal inglês “The International Herald Tribune”, retrata uma perigosa aproximação desses dois países, agravada pelos objetivos buscados pela Junta Militar que governa aquele país.
Embora seja rico em recursos naturais, Mianmar sofre com a má administração do governo, com incompetência na gestão das políticas econômicas e públicas, tornando-as ineficientes, além da enorme pobreza rural.
Elevado percentual da população encontra-se abaixo da linha nacional de pobreza e grande parte dela está envolvida em atividades ilícitas. Mianmar é o segundo maior produtor de ópio, e há sérios problemas no país relacionados ao uso de drogas e à prostituição que, por sua vez, também trafica homens, mulheres e crianças para exploração sexual, serviço doméstico ou trabalhos forçados no Leste e no Sudeste asiático.
Depois que a junta militar aumentou o preço dos combustíveis em agosto de 2007, milhares de birmaneses marcharam em protesto, liderados por pró-democratas e monges budistas.
No final de setembro de 2007, o governo massacrou os manifestantes, assassinando pessoas e detendo milhares por participar dos protestos. Desde então, o regime vem invadindo casas e mosteiros, e detendo suspeitos de atividades pró-democráticas.
Preocupada com a manutenção das linhas de comunicações marítimas que contornam a península asiática, originárias do Golfo Pérsico, para abastecerem suas megametrópolis ao longo do litoral do Mar da China e, em paralelo, permitir o lento e progressivo desenvolvimento rural por meio da oferta de energia e trabalho, a China investe pesado em infra-estrutura em Mianmar.
São portos e terminais especializados para receber navios de grande porte, especialmente com granel líquido (petroleiros e gaseiros), e oleodutos/gasodutos para transporte dessas commodities de alto valor para aquele país dos portos até a China, atravessando todo o território chinês.
Não é difícil imaginar a inclusão de bases navais nesse complexo portuário, visando ao apoio logístico de seus navios de superfície e submarinos que vierem a atuar no Oceano Índico e redondezas.
Tal parceria só existe se de fato for de interesse para ambos os países, o que aparentemente está se adequando perfeitamente. Como assim?
Ao investir em infra-estrutura em Mianmar, a China transfere receita para esse país, consolidando sua influência econômica naquele vizinho que possui significativo valor estratégico, e abre uma nova porta de acesso ao Oceano Índico sem mais necessitar transitar obrigatoriamente pelo Estreito de Málaca a fim de acessar ao Mar da China.
Uma economia de tempo e de meios, alem de flexibilizar sua logística no modal marítimo das rotas internacionais.
Mianmar, por sua vez, além de receber uma receita financeira significativa, emprega um conjunto de pessoas que até então não possuía nenhuma expectativa de melhoria de sua renda, na construção e operação dessas obras e seus respectivos equipamentos. A princípio, a manutenção ainda será feita sob a responsabilidade dos chineses.
Mas não é só isso.
O que Mianmar recebeu em troca dessa parceria foi a autorização política chinesa em estabelecer contato direto com o governo norte-coreano para negociar aquisição de tecnologia para construção de usina nuclear daquele país, preservando, assim, a Junta Militar e o seu regime. Como a forma de governo de ambos é baseada na tirania, esta identidade “facilitou” os encontros.
A “vista grossa” dos chineses sobre essa temerária aproximação só provoca desgaste político nas relações diplomáticas perante países e organismos internacionais que buscam evitar a proliferação de armas de destruição em massa.
Não acredito que tanto a ONU bem como os Estados mais atuantes da União Europeia, juntamente com os EUA e Japão, desconheçam essas pretenções birmanesas, muito menos os recentes esforços de Mianmar em expandir sua capacidade de produção e emprego de mísseis de curto e médio alcances e de armas químicas, estas como ogivas.
Também chama a atenção sobre o recente acordo de cooperação bilateral entre Mianmar e a Coreia do Norte para construção de túneis e cavernas visando a ocultar equipamentos militares de médio e grande porte (mísseis, aviões e embarcações).
É de conhecimento internacional a decisão norte-americana em transformar a Índia como seu principal aliado no Oceano Índico. O governo George W. Bush a reconheceu como um Estado nuclearizado em 2006, tendo assinado acordo de cooperação bilateral a respeito de transferência de tecnologia nuclear de ponta.
Desde então os EUA têm promovido treinamento e exercícios militares entre suas respectivas forças armadas.
O movimento chinês de expansão de sua presença militar na direção ocidental via Golfo de Benguela, certamente contribuirá para a elevação da sua influência na região, em direção oposta aos interesses norte-americanos e, particularmente, aos dos indianos.
A importância geoeconômica e estratégica das linhas de comunicações marítimas que permeiam o Oceano Índico para o oriente não será afetada e sim modificada, em decorrência da provável criação de uma área focal onde haverá o estabelecimento de um novo eixo de navegação em direção ao interior do Golfo de Bengala rumo a Mianmar.
Tal divisão de rota marítima exigirá um novo esforço para seu acompanhamento e proteção por parte dos Estados com elevado interesse político, estratégico e econômico regional e global. Além da China e Mianmar, Índia e os Estados Unidos são os mais interessados na segurança e proteção dessas rotas e espaços marítimos.
Apesar daquela área marítima pertencer historicamente à área de influência indiana, com esses movimentos a China demonstra o desejo de, muito em breve, vir a confrontar seus interesses perante os dos outros atores e os EUA sabem disso.
Em breve uma nova crise politico-estratégica virá a tona naquela região e os impactos irão ultrapassar os limites políticos e geográficos que giram em torno de Mianmar e Coreia do Norte, pois atinge os interesses diretos da China, da Índia e, por tabela, dos EUA.
Roberto Carvalho de Medeiros
é Capitão-de-Mar-e-Guerra (Reformado)
e Diretor de Relações Internacionais do Instituto Sagres.
Fonte: Info Rel
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