por Janer Cristaldo
Comentei, há dois dias, o filme Diário de uma Busca, no qual Flávia Castro faz de seu pai, um celerado pós-64, um herói das esquerdas. Hoje, a Folha de São Paulo anuncia um novo embuste:
Um dia, faz 40 anos, eu estava indo com meu pai para a escola e ele disse: 'Vou te contar um segredo: seu tio Carlos é o Carlos Marighella'. Assim começa o documentário Marighella, de Isa Grinspum Ferraz, com estréia prevista para outubro. Em uma hora e 40 minutos, Marighella desfia a trajetória do ícone da esquerda brasileira que acabou baleado e morto dentro de um Fusca em 1969, em São Paulo.
Segundo Morris Kachani, meio século da história do país pode ser contado a partir dos acontecimentos em sua vida: a gênese do comunismo baiano, mulato, do qual Jorge Amado era partidário; o conflito entre integralistas e comunistas; a legalização do Partidão; a clandestinidade; a frustração com Stálin; o golpe militar e, por fim, a luta armada. O terno titio da história é um dos tantos terroristas que pegaram em armas para transformar o Brasil em uma republiqueta soviética.
Mas o que torna Marighella único é o olhar íntimo que só quem era de dentro da família seria capaz de documentar: "Tio Carlos era casado com tia Clara. Eles estavam sempre aparecendo e desaparecendo de casa. Era carinhoso, brincalhão, escrevia poemas pra gente. Nunca tinha associado o rosto dele aos cartazes de 'Procura-se' espalhados pela cidade", continua a voz em off da própria Isa, que assina direção e roteiro do filme.
Há horas as esquerdas vêm tentando canonizar o santo homem. Em 2008, o grupo gaúcho Oi Nóis Aqui Traveiz encenava, na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, a peça O Amargo Santo da Purificação. Quem é o amargo santo da purificação? Nada menos que o assassino e terrorista baiano Carlos Marighella. Na época, Beth Néspoli, repórter de um jornal que se pretende defensor da democracia e do Estado de direito, o Estadão, fazia a apologia do terrorismo:
Numa das cenas, informações importantes chegam em versos cantados ao som do berimbau numa roda de capoeira da qual Marighella participa, uma de suas paixões, fica-se sabendo então, assim como o carnaval. Nessa fase jovem, a interpretação de Pedro De Camillis humaniza Marighella e faz dele um personagem de forte empatia. Paulo Flores interpreta o político maduro, já engajado na luta armada. O humor popular e picaresco dá o tom no momento do encontro amoroso entre Marighella e sua mulher Clara, vivida por Tânia Farias.
Em novembro de 2009, coube à Folha de São Paulo fazer o hagiológio do terrorista. Em sua coluna, Mônica Bergamo noticiava as homenagens que seriam prestadas por sua família nos quarenta anos de sua morte.
Às 11 horas, Clara Charf, companheira de Marighella, seu filho, Carlos Augusto, e a neta, Maria Marighella, vão distribuir flores e ler um manifesto na altura do número 806 da alameda Casa Branca, onde ele foi morto em emboscada preparada pelos órgãos de repressão. Às 19 horas, a Câmara concederá a ele o título de cidadão paulistano. No próximo dia 7, será aberta a exposição "Marighella Vive", no Memorial da Resistência de São Paulo, com fotos, documentos, cartas e poemas do líder guerrilheiro.
Sobre o “documentário”, anunciado para outubro, declara Isa Grinspum, não por acaso socióloga formada pela USP, a maior e mais antiga escola de comunistas no Brasil: "A idéia é desfazer o preconceito que até pouco tempo atrás havia contra meu tio. Era um nome amaldiçoado, sinônimo de horror. Além da vida clandestina e do ciclo de prisões e torturas, procuramos mostrar também o poeta, estudioso, amante de samba, praia e futebol, e acima de tudo o grande homem de idéias que ele foi".
Que bonitinho! Marighella era então um poeta, estudioso, amante de samba, praia e futebol, e acima de tudo um grande homem de idéias. Desde há muito, filmes de ficção vêm sendo chamados de documentários. Abaixo, reproduzo alguns preceitos do evangelho do santo homem. Que encontrei inclusive traduzido ao sueco nos anos 70 - Liten handbok för stadsgerilla -, quando vivia em Estocolmo.
OS SANTOS PRECEITOS DE SÃO CARLOS MARIGHELLA
Trechos do Manual do Guerrilheiro Urbano, de autoria do amargo santo da purificação:
A característica fundamental e decisiva do guerrilheiro urbano é que é um homem que luta com armas; dada esta condição, há poucas probabilidades de que possa seguir sua profissão normal por muito tempo ou o referencial da luta de classes, já que é inevitável e esperado necessariamente, o conflito armado do guerrilheiro urbano contra os objetivos essenciais:
a. A exterminação física dos chefes e assistentes das forças armadas e da polícia.
b. A expropriação dos recursos do governo e daqueles que pertencem aos grandes capitalistas, latifundiários, e imperialistas, com pequenas exropriações usadas para o mantimento do guerrilheiro urbano individual e grandes expropriações para o sustento da mesma revolução.
É claro que o conflito armado do guerrilheiro urbano também tem outro objetivo. Mas aqui nos referimos aos objetivos básicos, sobre tudo às expropriações. É necessário que todo guerrilheiro urbano tenha em mente que somente poderá sobreviver se está disposto a matar os policiais e todos aqueles dedicados à repressão, e se está verdadeiramente dedicado a expropriar a riqueza dos grandes capitalistas, dos latifundiários, e dos imperialistas.
(...)
No Brasil, o número de ações violentas realizadas pelos guerrilheiros urbanos, incluindo mortes, explosões, capturas de armas, munições, e explosivos, assaltos a bancos e prisões, etc., é o suficientemente significativo como para não deixar dúvida em relação as verdadeiras intenções dos revolucionários. A execução do espião da CIA Charles Chandler, um membro do Exército dos EUA que veio da guerra do Vietnã para se infiltrar no movimento estudantil brasileiro, os lacaios dos militares mortos em encontros sangrentos com os guerrilheiros urbanos, todos são testemunhas do fato que estamos em uma guerra revolucionária completa e que a guerra somente pode ser livrada por meios violentos.
Esta é a razão pela qual o guerrilheiro urbano utiliza a luta e pela qual continua concentrando sua atividade no extermínio físico dos agentes da repressão, e a dedicar 24 horas do dia à expropriação dos exploradores da população.
(...)
A metralhadora ideal para o guerrilheiro urbano é a INA calibre .45. Outros tipos de metralhadoras de diferentes calibres podem ser usadas - com o prévio conhecimento, dos problemas de munições. É preferível que o potencial industrial do guerrilheiro urbano permita a produção de um só tipo de metralhadora, para que a munição utilizada possa ser padronizada.
Cada grupo de tiro das guerrilhas urbanas tem que ter uma metralhadora manejada por um bom atirador. Os outros componentes dos grupos têm que estarem armados com revólveres calibre .38, nossa arma "padrão". O calibre .32 também é útil para aqueles que querem participar. Mas o .38 é preferível já que seu impacto usualmente põe o inimigo fora de ação.
As granadas de mão e as bombas convencionais de fumaça podem ser consideradas como armamento leve. Com poder defensivo para a cobertura e retirada.
As armas de carregador longo são mais difíceis de transportar para o guerrilheiro urbano já que atraem muita atenção devido seu tamanho. Entre as armas de carregador longo estão a FAL, as armas e rifles Máuser, as armas de caça tais como a Winchester, e outras.
(...)
A vida do guerrilheiro urbano depende de atirar, na sua habilidade de manejar bem as armas de pequeno calibre como também em evitar ser alvo. Quando falamos de atirar, falamos de pontaria também. A pontaria deve de ser treinada até que se converta num reflexo por parte do guerrilheiro urbano.
Para aprender a atirar e ter boa pontaria, o guerrilheiro urbano tem que treinar sistematicamente, utilizando todos métodos de aprendizado, atirando em alvos, até em parques de diversão e em casa.
Tiro e pontaria são água e ar de um guerrilheiro urbano. Sua perfeição na arte de atirar o fazem um tipo especial de guerrilheiro urbano – ou seja, um franco-atirador, uma categoria de combatente solitário indispensável em ações isoladas. O franco-atirador sabe como atirar, a pouca distância ou a longa distância e suas armas são apropriadas para qualquer tipo de disparo.
(...)
Quando já tem os recursos, o guerrilheiro urbano pode combinar a expropriação de veículos com outros métodos de aquisição.
Dinheiro, armas, munições e explosivos, como também veículos têm que ser expropriados. O guerrilheiro urbano tem que roubar bancos e lojas de armas, e conseguir explosivos e munições onde queira que os encontre.
Nenhuma destas operações se realizam com um só propósito. No entanto quando o assalto é somente pelo dinheiro as armas dos guardas também são tomadas.
A expropriação é o primeiro passo para a organização de nossas logísticas, que por si assume um caráter armado e permanentemente móvel.
O segundo passo é o de reforçar e estender a logística, dependendo das emboscadas e armadilhas em que o inimigo será surpreendido e suas armas, munições, veículos e outros recursos capturados.
Uma vez que o guerrilheiro urbano tem as armas, munições e explosivos, um dos problemas de logística mais sérios que terá em qualquer situação, é encontrar um lugar de esconderijo no qual deixar o material e conseguir os meios de transportá-lo e montá-lo onde é necessitado. Isto tem que ser completado mesmo quando o inimigo estiver vigiando e tiver as estradas bloqueadas.
Fonte: Janer Cristaldo
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