Ao criticar a greve de fome como forma de pressão dos opositores do regime cubano e compará-los a bandidos comuns presos no sistema carcerário o próprio presidente Lula se antecipou às objeções de que já utilizou esse recurso quando lutava contra a ditadura militar brasileira e classificou a sua antiga atitude de recorrer ao jejum para protestar como “insanidade”.
Coincidentemente, na primeira vez que cometeu um ato de insanidade como o dos atuais dissidentes cubanos, trinta anos atrás, os insatisfeitos com o regime de Fidel também eram destaque na imprensa mundial. Ao mesmo tempo em que Lula estava preso, entre abril e maio de 1980, o regime cubano enfrentava uma de suas principais crises: 10.875 cubanos invadiram a embaixada do Peru em busca de refúgio e de uma possibilidade de sair da ilha.
A crise dos dissidentes cubanos e a dos grevistas no ABC se arrastaram por longos dias. Nesse período, Lula e outros metalúrgicos presos com ele iniciaram o ato de “insanidade”. A intenção era não se alimentar até que as negociações entre patrões e empregados fossem retomadas.
Quatro dias depois, após uma visita do bispo D. Cludio Hummes, Lula e os outros presos que o acompanhavam desistiram do protesto e, após serem examinados por um médico, inciavam uma dieta especial de chá com bolochas, frutas e vitamina.
30 anos depois, a se levar em conta a declaração de Lula sobre os dissidentes cubanos, é capaz até que ele reconheça que cometeu outra insanidade e que o governo Figueiredo estava certo em prendê-lo, já que sua detenção à época também tinha fundamento legal do regime vigente, assim como as determinadas atualmente pela justiça cubana.
Cinco anos depois da primeira insanidade de Lula, o Brasil saía de vez do regime ditatorial. Cuba continua na mesma até hoje. Não há registro de que Lula voltou a fazer novas greves de fome nos 17 anos que passaram do fim do regime militar brasileiro até a sua eleição em 2002. Mas, em pelo menos duas ocasiões, apoiou mais atos de insanidade.
Numa delas em 1998, quando os sequestradores do empresário Abílio Diniz iniciaram um movimento de greve de fome para forçar sua extradição do país. Apesar de serem condenados pelo crime comum que cometeram – e que de certa forma teve influência na primeira eleição presidencial disputada por Lula em 1989 - reivindicavam a condição de presos políticos.
Ficaram 46 dias em greve de fome e contaram com a ajuda de Lula, então presidente de honra do PT, que foi visitá-los no Hospital das Clínicas em São Paulo e fez gestões diretas ao presidente Fernando Henrique Cardoso. Após falar com FHC por telefone, declarou à imprensa “que se Fernando Henrique demorar para decidir, vai terminar expulsando cadáveres do País”. Para o petista, na época, “só a expulsão e o indulto poderiam encerrar o caso.”
Na edição de 16 de dezembro de 1998, o repórter Marcelo Godoy relatou o encontro de Lula com os sequestradores:
“
… Para Lula, uma solução para o caso “vai depender muito da sensibilidade política do presidente”. Segundo ele, os seqüestradores agiram motivados “não por bandidagem”, mas por razões políticas. “Eu acredito que essas pessoas cometeram um erro muito grande; durante muito tempo fiquei magoado, pois o fato de o seqüestro ter sido usado na campanha de 1989 contra o PT pesou muito contra minha candidatura.” Lula concorria ao segundo turno das eleições presidenciais de 1989 quando os seqüestradores foram presos. “Mas nenhum homem tem o direito de guardar uma mágoa tanto tempo no coração.”
Companheiro – O encontro de Lula com os presos durou uma hora. Durante a conversa, trataram-se usando a expressão “companheiro”. Primeiro, falou Humberto Paz, o líder dos seqüestradores. Ele pediu perdão pelos prejuízos causados à candidatura de Lula em 1989 e disse que o seqüestro foi um erro. Paz é o preso que enfrentou ontem a maior piora no estado de saúde. Ele teve náuseas e vômitos e passou a maior parte do tempo deitado.
Depois, Lula fez um apelo aos seqüestradores para que eles não parassem de beber água à zero hora de hoje, como estavam planejando. O líder do PT disse que, assim, ganharia mais tempo para que ele e seu partido procurassem uma saída para o caso. Os presos atenderam ao pedido de Lula…”
No caso dos sequestradores, a greve de fome deu certo – eles voltariam a fazer mais duas – e todos foram extraditados para o Chile e Argentina, enquanto o brasileiro foi transferido para cumprir pena em regime mais brando no Ceará. Antes de partir para a Argentina, dois sequestradores escreveram cartas de despedida para o líder do MST, João Pedro Stédile, para o então deputado federal petista José Dirceu e para Lula. Diziam que o seqüestro foi um erro político, mas que não se arrependiam.
Em 2000, ainda somente presidente de honra do PT, Lula voltaria a se deparar com o ato de insanidade. Desta vez, por professores paranaenses que reivindicavam aumento salarial. Não há registro da posição de Lula na época. Apenas a imagem dele visitando os grevistas na sede do Sindicato dos Jornalistas em Curitiba.
Luiz Augusto/Gazeta do Povo – 09/06/2000
Já presidente, Lula voltaria a se deparar com o ato de insanidade. Mas desta vez contra o seu próprio governo, em 2005, no primeiro mandato. Em protesto, contra as obras de transposição do Rio Sâo Francisco, o bispo Luís Flávio Cappio iniciu um jejum que duraria 24 dias e que o levaria para um UTI hospitalar. A posição de Lula à época em relação ao recurso do jejum não foi tão enfática como a de agora com os cubanos e chegou até a classificar o ato como grandeza.
Quando o bispo ainda estava no início do protesto, disse que a posição do bispo era compreensível. “Quando você faz greve de fome é porque tem uma forte razão”, argumentou, lembrando que ele próprio utilizou esse recurso. “O bispo tomou uma posição pessoal que eu respeito, porque eu também já tomei a decisão na minha vida de fazer greve de fome.” Para Lula, escreveu Ricardo Brandt, a “grandeza” do bispo era um dos fatores que o faziam acreditar num acordo. “Todas as pessoas que tomam a decisão de fazer greve de fome têm grandeza. Por isso estou consciente de que a gente encontrará um bom termo.”
Após mais de 20 dias, já tinha outra opinião, agora baseada na fé. Pouco antes de o bispo anunciar o fim da greve de fome, Lula disse que, como cristão, considerava essa forma de protesto contrária aos princípios da Igreja e não pode ser acolhida por um governante. “Se o Estado ceder, o Estado acaba. Espero que ele tenha juízo.”
Lembrou da greve de fome que fez com colegas metalúrgicos em 1980 na prisão. “Sei o que é greve de fome. Dá uma fome danada”, disse. “Aprendi com meus companheiros da Igreja Católica que só Deus pode dar e tirar a vida.” E cobrou posicionamento mais firme da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em relação ao caso. “Espero que a Igreja diga para ele o que disse para mim e ele cumpra os preceitos cristãos. A Igreja não se envolve em questões técnicas.”
Para sorte de Lula, nem todos religiosos compartilhavam dessa opinião quando ele lutava contra a ditadura militar brasileira. Foi Dom Paulo Evaristo Arns, por exemplo, que extrapolou suas funções técnicas e garantiu a segurança – e quem sabe até a sobrevivência – de Lula ao divulgar para a imprensa que o dirigente sindical havia sido preso em 1980 tão logo soube da informação por seus informantes, como relata Lucas Figueiredo no livro “Olho por Olho”. Aliás, uma boa recomendação de leitura ao presidente e para quem quiser saber um pouco mais sobre sistemas jurídicos de regimes ditatoriais.