Sobre a Ventura de Não Ter Vivido em Moscou
Carreira Militar

Sobre a Ventura de Não Ter Vivido em Moscou


por Janer Cristaldo
PARTE I
Leitor me pergunta porque eu, anticomunista ferrenho, pedi um dia bolsa para a universidade Patrice Lumumba, em Moscou. Ora, nada tinha a ver com comunismo. Eu queria era sair do Brasil. Fosse para onde fosse. Quanto mais longe, melhor. Quanto mais estranha a língua, mais me atraía o país. A Patrice me parecia a hipótese mais viável. Além disso, eu convivia na Rua da Praia com o Paulo Silveira, que era diretor do Instituto Brasil-URSS em Porto Alegre. Me matriculei então na PUC, em um curso de russo, com o saudoso professor Sergiei Zhukof, um jovem de 94 anos. Nunca vi tanta jovialidade em pessoa tão idosa. Também pudera: Zhukof era esgrimista e campeão de vela, entre outras coisas.
Pedi bolsa também para a Finlândia, Alemanha e Japão. Curiosamente, a bolsa acabou vindo de onde menos eu esperava, da França. Resultado de minha demanda à Patrice Lumumba: minha candidatura foi interceptada e, no final dos 60, fui preso por um delegado em Dom Pedrito, que me interrogou sobre isso. Em verdade, a questão era outra, era um imbróglio sexual. Eu namorava a mulher mais linda da cidade – uma terna bugra guarani que ainda espero reencontrar antes de partir - e um advogado, interessado na moça, me armou uma armadilha de cunho político.
O curioso é que o delegado sabia tudo sobre minha vida. "No dia tal e tal, o sr. lia uma Veja no banco na praça, em frente à igreja, em cuja capa estava escrito CCCP". O delegado era um afrodescendentão, estudava Direito e, mesmo sem ter terminado o curso, já usava anel no dedo. Não é CCCP, doutor (nestes momentos, melhor apelar ao Dr). Em cirílico, é SSSR, Soyuz Sovetskikh Sotsialisticheskikh Respublik. O que o doutor chama de CCCP estava escrito na foto de capa da revista, na camiseta de um atleta das Olimpíadas.
Depus por quatro ou cinco horas. Minha vida foi revirada, de alto a baixo. Só para concluir: eu usava uma espessa barba naqueles anos, muito antes da existência do PT e de a barba ser usada como crachá. Para demonstrar erudição, o afrodescendentão perguntou-me:
- O senhor sabia que sua barba suscita antipatias?
Sabia.
- E por que não corta?
Ora, era verão, a barba começava a incomodar-me. Mas, diante das circunstâncias, decidi:
- Eu até estava pensando em cortá-la. Mas agora, não corto mesmo.
Tive sorte em não receber a bolsa. Primeiro, é claro que não iria aceitar as regras de disciplina da Lumumba. Pra começar, não podia transar as russas. Fui saber isso bem mais tarde, pelo livro de Sérgio Faraco, Lágrimas na Chuva. Não ia dar pé mesmo. Uma das coisas que sempre me fascinou na vida foi ouvir mulheres gemendo em outras línguas. Ora, ouvir gemidos na língua de Dostoievski e Kuprin era para mim uma antecipação do paraíso. Mas minha primeira decepção com o paraíso surgiu antes mesmo de ter resposta da bolsa.
Numa madrugada na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, na lancheria do Matheus, encontrei José Monserrat Filho, que voltava de Moscou, após especializar-se em Direito Espacial. O personagem me fascinava. Eu estava conversando com alguém que falava russo, vivera em um país longínquo e certamente ouvira meninas gemendo em russo. Eu ouvia seus relatos como um cãozinho atento, desejoso de conhecer o mundo.
- Como é que é na Patrice, Monserrat? Cada estudante tem um quarto?
Era meu sonho, um espaço meu para transar as russinhas. Monserrat me jogou um balde de água fria:
- Nada disso. Cada quarto tem três beliches, para seis pessoas.
Ali, meu sonho começou a murchar. Mais tarde, anos 70, quando em Estocolmo, vi do que escapara. Brasileiros que haviam feito curso na Lumumba, após terminar o curso tinham de sair da Rússia. Dada a época, não podiam voltar ao Brasil. Saíam então, de diploma em punho, a lavar pratos na Europa. Eu os chamava, em sueco, de "internationella diskare", lavadores internacionais de pratos.

PARTE II
Sem jamais ter ido a Moscou, tive outras notícias da cidade. Quando vivia em Paris, uma boa amiga telefonou-me de Porto Alegre. “Podes receber meu namorado? Ele está indo para Moscou, vai fazer escala em Paris”.
Claro que podia. O gaúcho chegou, eu o recebi com meus melhores vinhos. Charlamos por pelo menos duas noites. Que vais fazer em Moscou? – perguntei. Vou fazer arquitetura, na Patrice. Um curso de cinco anos”. Sabes desenhar caixas de fósforos? – voltei à carga. Ele me olhou com um gesto de que eu não merecia resposta. Bom, meu caro, se sabes desenhar caixas de fósforo, já dominas toda a arquitetura soviética. Nem precisa ir.
Ofendeu-se, o gaúcho. Queria ir embora lá de casa. Instei-o a ficar, eu apenas fazia um comentário. Mas predisse: tu vives boa vida em Porto Alegre. Não vais agüentar nem seis meses em Moscou. Despediu-se de mim irritado.
Mês seguinte, chega sua namorada, advogada trabalhista. Iria visitá-lo em Moscou. Ficou um mês esperando pelo visto. Nesse meio tempo, fui lhe apresentando as delícias do capitalismo. Vai daí que, nesses mesmos dias, chega lá em casa um amigo, doutor em Física de plasmas, pessoa admirável, que quando bêbado citava as quatro aporias de Kant ... em alemão. Os dois se entenderam e saíram a viajar pela Itália. Antes de partir para Moscou, ela tomou um banho de capitalismo, dos pés à cabeça. Estava fascinada com o Ocidente. E vacinada contra o socialismo.
Antes de sua partida, manifestei minha preocupação com sua vida sexual em Moscou. Ofendeu-se. Que queres dizer com isso?
- Minha preocupação é onde vais transar com teu namorado.
- Como onde? No quarto dele, é claro.
- No quarto dele, minha querida, tem mais cinco. Não vai ser fácil.
Antes de concluir, uma pequena peça que preguei à moça. Existe em Paris um ônibus chamado PC. Como qualquer pessoa que está em Paris, seja parisiense ou turista, eu tinha uma carte orange, título de transporte que é mais barato do que comprar bilhetes um a um. Vale por uma semana ou mês, conforme você quiser. Na hora de entrar no ônibus, você apenas a mostra ao motorista. Disse pra moça:
- Este é PC, o ônibus do Partido Comunista. Estudante ou operário não paga nada, é só mostrar carteirinha. Tu vais pagar porque não és estudante nem operária.
Ela achou lindo, um país onde o Partido oferecia transporte de graça a estudantes e operários. Nada a ver. PC significa Petite Ceinture, o ônibus que faz o trajeto dos bulevares interiores de Paris. Eu não pagava pelo simples fato de que comprara a carte orange. Soube que ela voltou a Porto Alegre louvando as virtudes do PC francês.
Bom, vai daí que a moça acabou indo ao paraíso socialista. Voltou um mês depois. Como é que foi? – perguntei. Ela não falou muito. Disse apenas que era uma cidade concebida para gigantes. Antes de voltar ao Brasil, fez-me algumas confidências. “Tudo é escasso lá. E não há escolha. Os absorventes higiênicos são enormes”.
Pois é, minha querida. País de gigantes é assim mesmo. Mas a história não termina aqui. Continuamos a trocar correspondência. Era a época das cartas, que demoravam pelo menos uma semana para chegar. Três meses depois, ela me dá notícias de Porto Alegre e fala que o namorado havia decidido voltar, que não via muito sentido em ficar cinco anos estudando agronomia em Moscou. (Agora, era agronomia. O curso inicial era arquitetura). Continuou escrevendo e, ao final, um PS: “Tche, o Rui chegou ontem”.
O bravo militante comunista, que fora à Rússia para um curso de cinco anos, não agüentou nem seis meses, como eu previra. Nos encontramos mais tarde em Porto Alegre. Viu?” – perguntei –. “Nem seis meses”.
Ah! Não vou te explicar. Não vais entender”.
Não iria entender mesmo. Só afirmei que ele não suportaria seis meses em Moscou.
Fonte: Janer Cristaldo



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